No pequeno e contundente livro A cruel pedagogia do vírus, Boaventura de Souza Santos nomeia o que se precisa enfrentar para vencer as desigualdades. Seriam “três unicórnios”: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Segundo o autor, os unicórnios atuam em duas frentes: invisibilidade e isolamento (2020, p. 12-13):
A primeira astúcia revela-se em múltiplas artimanhas. Assim, o capitalismo aparentou ter desaparecido numa parte do mundo com a vitória da Revolução Russa. Afinal, apenas hibernou no interior da União Soviética e continuou a controlá-la a partir de fora (capitalismo financeiro, contra-insurgência). Hoje em dia, o capitalismo consegue a sua maior vitalidade no seio do seu maior inimigo de sempre, o comunismo, num país que em breve será a primeira economia do mundo, a China. Por sua vez, o colonialismo dissimulou o seu desaparecimento com as independências das colónias europeias, mas, de facto, continuou metamorfoseado de neocolonialismo, imperialismo, dependência, racismo, etc. Finalmente, o patriarcado induz a ideia de estar moribundo ou enfraquecido em virtude das vitórias significativas dos movimentos feministas nas últimas décadas, mas, de facto, a violência doméstica, a discriminação sexista e o feminicídio não cessam de aumentar. A segunda astúcia consiste em capitalismo, colonialismo e patriarcado surgirem como entidades separadas que nada têm que ver umas com as outras. A verdade é que nenhum destes unicórnios em separado tem poder para dominar. Só os três em conjunto são todopoderosos. Ou seja, enquanto houver capitalismo, haverá colonialismo e patriarcado.
Este parece ser um modo demasiado tenso e explícito para falar sobre desigualdades. Se esse for o caso, os nomes dos “unicórnios” podem ser substituídos: desigualdades sociais e econômicas, no lugar de capitalismo; desigualdades raciais e culturais, no lugar de colonialismo; e desigualdades de gênero e políticas, no lugar de patriarcado. Reconhecer que é assim, assentada nesses pilares, que nossa história se desenrola é o primeiro passo para o enfrentamento das desigualdades.
Desde a colônia, no Brasil, as desigualdades sociais, culturais, econômicas e políticas são mantidas sob controle e sustentam suposta meritocracia e discursos salvacionistas. O relato e a denúncia das desigualdades estão presentes há muito, embora seu enfrentamento seja sempre relativizado.
Alguns dados recentes contribuem para ilustrar o cenário. Segundo relatório da PNAD Contínua, 2020/IBGE1:
De fato, somos um país desigual. Em 2018, estudo do Pnud registrou que no ranking de concentração de renda “o Brasil possui o 9º pior valor do mundo (51,3)4”. É um cenário difícil de compreender para uma das maiores economias do mundo. Em 2020, o Brasil saiu da lista dos dez mais, mas permanece entre as 20 maiores economias do mundo.
O cenário, ainda que com poucos dados, revela o peso da combinação entre capitalismo, colonialismo e patriarcado. Essa combinação, expressa em números, se desdobra em cotidianos, atualizando suas frentes ocultas e naturalizadas. Naturalizadas, as desigualdades são compreendidas e tratadas como um destino contra o qual não há o que fazer, como inerentes a qualquer sociedade.
Além dos efeitos históricos das desigualdades mais evidentes, ou mais estudadas – classe, raça e, mais recentemente, gênero, especialmente as que se referem às mulheres – é preciso atentar para sua potencialização, quando articuladas: homens brancos alcançam maiores rendimentos do que homens negros; homens, maiores rendimentos do que mulheres; mulheres brancas, maiores rendimentos do que mulheres negras.
Há uma escala para aferir a exclusão, qualquer que seja o filtro. No caso, trata-se dos filtros de gênero e raça, que conduzem ao filtro de classe, que conduz aos filtros territoriais – urbano, periurbano, rural e por aí vai. Trata-se do emaranhado de marcadores sociais da diferença, chamado, também, de interseccionalidade. Kimberlé Crenshaw (2002, p. 177) explicita essa noção:
A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de vários modos: discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou tripla discriminação. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.
A existência de uma escala de exclusões se explicita também na interpretação dos dados que informam sobre as desigualdades. Sobre isso, a referida autora alerta para as situações de “superinclusão”, quando uma discriminação é identificada em um subgrupo e assumida ou tratada como um problema de todo o grupo (por exemplo, a maior probabilidade de que meninos abandonem a escola ser tratada como “abandono escolar”) e para a “subinclusão”, situação em que um subgrupo sofre uma discriminação e isso é considerado como um problema “localizado” (por exemplo, a maior probabilidade de que negras e negros abandonem a escola, ser tratada como um problema das pessoas negras). Diz a autora: “nas abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível5" (p. 176).
O Brasil chega ao século XXI com mais de 15 milhões de analfabetos(as), 6 anos de escolaridade média, patamar alcançado pelos Estados Unidos, um século antes. Ou seja, apesar de avanços relevantes, nosso país ainda não foi capaz de desenvolver estratégias educacionais à altura de promover uma educação de qualidade para todas e todos.
É necessário enfrentar o duplo desafio de saldar a dívida histórica e ao mesmo tempo responder às mudanças tecnológicas, sociais, econômicas e culturais do mundo contemporâneo.
A segunda década do século XXI é marcada pelo novo Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado por unanimidade na Câmara Federal no final de 2014. Fruto de ampla mobilização de diversos setores da sociedade e atores do cenário educacional, suas 20 metas conferiram ao país um horizonte para o qual os esforços dos entes federados e da sociedade civil devem convergir com a finalidade de consolidar um sistema educacional capaz de concretizar o direito à educação em sua integralidade. Para isso, é necessário enfrentar as barreiras para o acesso e a permanência na escola, reduzindo as desigualdades, promovendo os direitos humanos e garantindo a formação para o trabalho e para o exercício autônomo da cidadania.
Segundo o Relatório do 3º ciclo de monitoramento das metas do PNE 2020, elaborado pelo INEP6, conquistas foram feitas e precisam ser consideradas; porém, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que os resultados estão aquém do esperado. O relatório aponta que, dos 57 indicadores que monitoram as 20 metas do PNE, 37 permitem controlar o esforço educacional necessário para a realização dessas metas em relação aos avanços obtidos nos primeiros seis anos de vigência do Plano. Dessa forma, é possível calcular um nível de execução do PNE (2014-2024).
Entre os 37 indicadores que admitem controle, 31 deles apresentaram nível menor do que 60%, valor esperado para o 6º ano do PNE. Nos extremos, seis indicadores apresentaram retrocesso e quatro chegaram a 100% de execução. Importante notar que três dos quatro indicadores que já chegaram a 100% de execução referem-se à pós-graduação. Por outro lado, os seis que indicaram retrocesso referem-se a pontos importantes da educação básica como: acesso à escola de estudantes com deficiência, altas habilidades ou superdotação; ampliação das matrículas em tempo integral; educação de jovens e adultos integrada à educação profissional e porcentagem do gasto em educação pública em proporção ao PIB.
É neste contexto que o Brasil é atingido pela pandemia da Covid-19, que escancarou debates como: as desigualdades de aprendizagem; as diferenças de condições de infraestrutura nas escolas, de acesso a recursos pedagógicos, de engajamento das famílias nas atividades escolares; a falta de uma estratégia nacional sistêmica para apoiar estados e municípios; e a importância fundamental de docentes no ensino e de aprendizagem.
Todos estes pontos passaram a ser mais concretos e visíveis para a população brasileira, o que gera a oportunidade de um debate que envolva a sociedade como um todo, na busca de possibilidades para uma educação de qualidade tendo como elementos essenciais a equidade e a inclusão.
Vale destacar o papel da educação na promoção da cidadania, da justiça, do respeito mútuo, da construção de uma sociedade mais colaborativa e pacífica, no fortalecimento da democracia e na retomada do crescimento econômico, com atenção ao enfrentamento das discriminações, pela valorização da diversidade e pela repulsa à disseminação de ódio.
A crise gerada pelo coronavírus nos defronta com a fragilidade da nossa sociedade, com as imensas desigualdades e com a vulnerabilidade em que grandes parcelas da população vivem. Somos assim chamados a refletir sobre o tipo de desenvolvimento socioeconômico que queremos.
Uma política educacional nunca é neutra: revela sempre a disputa de projetos que existem na sociedade. Nessa direção, é importante ressaltar que o PNE, com vigência até 2024, é a síntese dos grandes objetivos da educação a serem perseguidos pelo Brasil. Dessa forma, qualquer iniciativa que vise melhorar o quadro da educação brasileira deve ter como referência este Plano. A avaliação das metas e estratégias do PNE já foi realizada pelo INEP e deve servir de referência e dar subsídios para o desenvolvimento, a implementação, continuidade e ampliação de políticas públicas, considerando, além disso, os efeitos da pandemia na educação.
Confira materiais para ampliar seus conhecimentos sobre o contexto histórico das desigualdades educacionais no Brasil.
Neste artigo da Revista Na Ponta do Lápis (Programa Escrevendo o Futuro/Olimpíada de Língua Portuguesa), a doutora em Educação Ana Lorena Bruel reflete sobre as relações entre as desigualdades sociais e educacionais no ensino de língua portuguesa. Em sua análise, a autora se baseia em dados do Saeb realizado em 2019 com estudantes do 3º e 4º anos do ensino médio em escolas públicas e privadas.
Neste especial multimídia produzido pelo Cenpec, você relembra tendências e práticas de ensino e aprendizagem da língua escrita em nossa história. Desde o início da escolarização (final do século XIX), até os dias atuais e as mudanças sociais promovidas pelas novas mídias e seus reflexos na educação. Este percurso é representado em três linhas, que destacam aspectos políticos, pedagógicos e conceituais ligados à escolarização, alfabetização e letramento.
Neste vídeo, Carlos Roberto Jamil Cury, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG), autor do livro Lei de Diretrizes e Bases (LDB), apresenta uma análise histórica das leis educacionais no Brasil e comenta as três etapas da educação básica. A entrevista, realizada em 2010, faz parte de um programa que apoia a disciplina Lei de Diretrizes e Bases do curso de Pedagogia Unesp/Univesp.
O que é uma escola justa? É uma escola que reconhece o mérito de cada um independentemente de sua origem social. Esta é a resposta mais comum. No entanto, na prática, a chamada meritocracia não impede que as desigualdades sociais afetem os destinos de cada pessoa nem preserva de humilhação os que não obtiveram êxito por acreditarem que a causa de seu fracasso é sua incompetência. Contudo, na democracia, a justiça se mede primeiramente pelo destino reservado aos mais fracos. Neste sentido, a “escola das oportunidades” exige repensar nossa concepção de igualdade. Como tratar melhor os que têm menos? Como transformar os destinos sociais pela educação? Tantas interrogações exigem coragem e audácia, pois o futuro da escola não pode se prender ao seu passado.
Nesta produção do Cenpec, especialistas falam como a ideia de desenvolvimento integral das pessoas por meio da escolarização surge, em diferentes configurações, ao longo da história brasileira. Um nome sempre lembrado é o educador Anísio Teixeira, mas há muitos outros educadores e educadoras que desenvolveram e implementaram ideias e metodologias inovadoras. Assista.
1 Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2020. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. (Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica, ISSN 1516-3296; n. 43).
2 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/29431-sintese-de-indicadores-sociais-em-2019-proporcao-de-pobres-cai-para-24-7-e-extrema-pobreza-se-mantem-em-6-5-da-populacao. Acesso em 23.Jul.2021
3 Disponível em: https://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2020/11/Boletim-001-2020.pdf. Acesso em 23.Jul.2021.
4 Concentração de renda medida pelo Coeficiente de Gini – diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Disponível em: https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/presscenter/articles/2018/brasil-mantem-tendencia-de-avanco-no-desenvolvimento-humano--mas.html. Acesso em 04.Ago.2021.
5 CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, Jan. 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2002000100011&lng=en&nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 04. Ago. 2021.
6 Disponível em: http://portal.inep.gov.br/documents/186968/6975249/Relat%C3%B3rio+do+3%C2%BA+Ciclo+de+Monitoramento+das+Metas+do+Plano+Nacional+de+Educa%C3%A7%C3%A3o/4259eed4-ce87-46c7-b5bb-a9e09dee5abb?version=1.0. Acesso em 23.Jul.2021.